Texto: Rosemeri Moreira
Direção: Priscila Schran de Lima
Música: Aline Cristina Schran
Atrizes: Edilza Maria da Luz e Isabely Schran Kaveski
Participação: Onira Tereza Nascimento, Mariana Ferreira Bayer, Terezinha Maciel, Silvana Portela, Mulheres Alto da XV
Fotos: Ricardo Almeida Lima
Somos muitas
Marias
Maria nasceu num dia qualquer de
nosso senhor.
As primeiras palavras que ouviu no
mundo foram ditas por seu pai:
- “Eu queria filho homem! Filha
mulher não serve pra nada. Com quem vou jogar futebol? Com quem eu irei beber
no bar? Filha mulher tem que cuidar muito para não virar mulher atoa.
Homem não, eu posso criar solto
no mundo senão não vira macho.
(constituição federal – “todas as
pessoas nascem iguais em deveres e ....”)
Maria ouviu o que outras
incontáveis marias também ouviram de seus pais. Aos poucos ela foi descobrindo
e aprendendo que seu corpo de mulher trazia a marca de ser considerada
inferior.
Na família de Maria somente seu pai
falava e decidia, enquanto sua mãe, temerosa, sempre se calava e sufocava o
choro.
Maria, em meio às bonecas que
ganhava, as tábuas de passar roupa de brinquedo, fogõezinhos e panelinhas, aos
poucos foi aprendendo que o seu lugar no mundo era bastante limitado e definido.
Ela sonhava com os brinquedos dos
irmãos: que vontade de andar de bicicleta, montar prédios e casas com os blocos
de madeira; brincar de corrida de carrinho. Ela nem podia correr e se exercitar
como os meninos, para que as fitas e laços que nela colocavam não saíssem do
lugar. Maria descobriu que deveria também se comportar como uma boneca para que
gostassem dela. Boneca imóvel e sem vontade alguma, morta de espírito e de
vontade humana.
Ela não tinha vontade de largar
suas bonecas, mas seria tão bom poder brincar com todos os outros tipos de brinquedos....
Aos poucos foi aprendendo que não
queriam que ela dirigisse carros, não queriam ela projetasse edifícios ou
casas, não deveria pilotar um avião, nem falar o que pensava perante as outras
pessoas. Por isso, nunca aprendeu a falar em público. Aprendeu a calar-se. (continua)
A partir de seus brinquedos, Maria aprendeu que dela era esperado que cuidasse sozinha dos filhos do casal e que soubesse muito bem cozinhar e passar roupa. Isso bastava, isso era suficiente.
A partir de seus brinquedos, Maria aprendeu que dela era esperado que cuidasse sozinha dos filhos do casal e que soubesse muito bem cozinhar e passar roupa. Isso bastava, isso era suficiente.
De tanto vestirem Maria só com
roupas cor-de-rosa, ela esqueceu as outras cores do arco-iris.
Na época de iniciar os estudos
escolares, não teve muito incentivo da família, afinal de contas, ela era só
uma mulher. Por que precisaria se interessar por política, por matemática ou
por filosofia?
Maria e todas as mulheres nasceram
para casar, por isso o investimento nas bonecas, na roupa cor-de-rosa e no ferrinho
de passar roupa. O lar, a casa, as crianças e o trabalho doméstico para as
mulheres e o restante do mundo para os homens.
Não que ela não quisesse se casar,
mas seria tão bom estudar... quem saber ter uma profissão, sustentar-se, para
depois pensar no casamento... Será que
teria que se casar para ter alguém para sustentá-la?? Não seria tão melhor se a
base do casamento fosse o amor e não a necessidade financeira?
Mais tarde, quando moça, Maria
descobriu que não podia votar. O mundo das decisões políticas não era para as mulheres.
Como organizar os hospitais, as
escolas, a segurança das pessoas, não diziam respeito às mulheres, elas não
entendiam disso.
Maria e todas as mulheres sempre tinham
muita louça e roupa pra lavar em casa, por isso não deveriam jamais dar opinião
sobre esses assuntos mais sérios. Discutir os salários e os empregos; a riqueza
e pobreza de um país eram assuntos só para os homens.
O mundo que Maria enfrentou quando
moça, não era aquele mundo cor-de-rosa fantasiado nos brinquedos infantis e
incentivado por seus pais.
No mundo real, todas as pessoas
precisavam trabalhar. Maria, com o pouco estudo que tinha conseguiu somente emprego
com os mais baixos salários.
Trabalhando, do nascer ao por do
sol, aos poucos descobriu que seus colegas homens, ganhavam mais do que as
mulheres, executando as mesmas tarefas. Ela não conseguia entender isso.
Um dia, tarde da noite fazendo hora
extra para poder aumentar o pequeno salário, seu chefe a ela se achegou, tocou
em seus cabelos e disse bem baixinho: “posso lhe dar uma aumento se vc for
simpática comigo.”
(assédio sexual no trabalho – 32%
já sofreram assédio sexual no trabalho, ver pesquisa 2011)
A partir daí Maria começou a sofrer
assédio sexual no trabalho. Seu patrão, e muitos outros homens em cargos de
mando, usam a relação de poder patrão-empregada para constranger sexualmente as
mulheres funcionárias.
A cada dia o trabalho de Maria
passou a ser mais e mais insuportável. Os olhares indecentes, a mão do patrão
em seu corpo, cada vez que ele tinha oportunidade, causavam humilhação, indignação
e ao mesmo tempo culpa. Mas o medo de perder o emprego era sempre maior.
Maria sempre pensava: será que
estou com a roupa errada? Será que eu não deveria usar batom no trabalho? Será
que eu sorri de um jeito errado e ele entendeu que eu queria isso?
Maria, assim como outras tantas,
sentia culpa por ser uma mulher, por ter um corpo de mulher e provocar o assedio do patrão.
Mas a vida de Maria ainda traria
outras culpas maiores.
Um dia, voltando do trabalho, ela e
uma amiga resolveram ir ao cinema. Nunca tinham regalias, e resolveram um pouco
aproveitar a vida. Que bom viver a fantasia dos filmes românticos durante uma
hora e pouco.
Após a fantasia do cinema, sofreu o
choque da realidade de um mundo que não respeita as mulheres. No ponto de
ônibus Maria foi estuprada. O homem furtivo com uma faca, a esmurrou, jogou no
chão e a violentou.
A dor da alma de Maria seria sempre
maior do que a dor do seu corpo dilacerado.
Como curar a humilhação de alguém
aviltar o seu corpo? Como curar a dor da violência sexual de um homem contra
uma mulher?
A já imensa dor da alma que Maria
sentia seria acrescentada a dor novamente de sua culpa.
O policial perguntou: que roupa vc
estava vestindo?
A vizinhança sentenciou: moça que
presta não está na rua à noite. Elas
merecem.
Afinal de contas, mulheres saírem
de casa para ir ao cinema é algo tão criminoso, mas tão criminoso que chega a
encobrir o ato do estupro. Uma mulher ter a liberdade de sair à rua, de dia ou
de noite, para fazer o que quer que seja,
é muito mais revoltante que um homem estuprá-la.
Maria descobriu que ela que deveria
ter vergonha do crime que sofreu. Que a culpa era dela e não do estuprador. E assim,
como outras tantas vítimas mulheres e também crianças, ela aprendeu a se calar
para não ser mais ainda discriminada.
Passado alguns anos, conheceu um
rapaz e logo se casaram.
Na primeira noite que passaram
juntos, sua vã esperança de, enfim,
encontrar um pouco de paz e alegria caíram por terra:
- “Vc não é virgem? Vc é mulher da
vida, vc não presta!”, Maria ouvia essas palavras em meio a tapas e
bofetões.
Por que o meu valor como ser humano
depende disso? Ela não conseguia entender... Ela conseguia somente sentir o
gosto de sangue em sua boca. Não serei uma boa mãe? Não serei uma boa esposa
devido à falta de um pequeno pedaço de pele, que de mim foi arrancado com violência?
Desde então, seu marido teve a desculpa necessária
para humilhá-la e machucá-la com palavras e com a força bruta. SE não apanhava,
era chamada de feia, de gorda, de burra... Ela era um nada.
Queixou-se a sua mãe: “ filha, vc é
a esposa, vc tem que obedecer a seu marido”.
Maria não tinha ninguém mais a recorrer... não havia lei alguma que
afirmasse o contrário do que havia dito sua mãe. O homem era o “cabeça” da família e ela lhe devia
obediência e sofrer as violências bem calada.
Logo Maria constatou que uma
vida brotava em seu ventre. Sentiu-se ao
mesmo tempo assustada e contente. Seu maior temor era ter uma filha mulher.
O primeiro presente que ganhou por
carregar uma vida em seu ventre chegou rápido: uma carta de demissão.
No entendimento do patrão, Maria
grávida não prestava nem mais para ser explorada no mercado de trabalho.
Com uma criança em seu ventre a via crucis de Maria estava chegando ao
fim.
Enraivecido com a notícia da perda
do emprego, em um acesso de cólera, o marido de Maria pois fim a sua miserável
vida.
Mas foram muitos os que mataram
Maria.
Maria foi morta por uma educação
familiar machista que delimita o papel das mulheres e as excluiu do mundo
público e de ampliar os horizontes.
Maria foi morta por uma educação
escolar machista que não a profissionalizou e não a preparou para o
enfrentamento de sociedade de classes em que todos precisam se sustentar.
Maria foi morta pelo patrão
capitalista explorador que aumenta seu lucro diminuindo o salário das mulheres.
Maria foi morta pela sociedade,
pelos vizinhos, pelos parentes, por todos que são coniventes com a violência
sexual e culpam a vitima, deixando de lado a ação do agressor.
Maria foi morta pelos agentes do
poder público que repetem o machismo julgando as mulheres pelas roupas que elas
vestem.
Maria foi morta por uma legislação
baseada no patriarcado em que as mulheres não possuem os mesmos direitos que os
homens.
Maria foi morta por todos nós que nos calamos
perante a violência contra a mulher
Maria morreu foi de silencio.
O meu, o teu, o nosso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário