quinta-feira, 14 de março de 2013

SOMOS MUITAS MARIAS

Este teatro foi apresentado na 10ª Romaria da Mulher. Vale a pena ler. É emocionante. É comovente.

Texto: Rosemeri Moreira
Direção: Priscila Schran de Lima
Música: Aline Cristina Schran
Atrizes: Edilza Maria da Luz e Isabely Schran Kaveski
Participação: Onira Tereza Nascimento, Mariana Ferreira Bayer, Terezinha Maciel, Silvana Portela, Mulheres Alto da XV
Fotos: Ricardo Almeida Lima
 
Somos muitas Marias

Maria nasceu num dia qualquer de nosso senhor.
As primeiras palavras que ouviu no mundo foram ditas por seu pai:
- “Eu queria filho homem! Filha mulher não serve pra nada. Com quem vou jogar futebol? Com quem eu irei beber no bar? Filha mulher tem que cuidar muito para não virar  mulher atoa. Homem não, eu posso criar solto no mundo senão não vira macho.
(constituição federal – “todas as pessoas nascem iguais em deveres e ....”)
Maria ouviu o que outras incontáveis marias também ouviram de seus pais. Aos poucos ela foi descobrindo e aprendendo que seu corpo de mulher trazia a marca de ser considerada inferior.
Na família de Maria somente seu pai falava e decidia, enquanto sua mãe, temerosa, sempre se calava e sufocava o choro.
Maria, em meio às bonecas que ganhava, as tábuas de passar roupa de brinquedo, fogõezinhos e panelinhas, aos poucos foi aprendendo que o seu lugar no mundo era bastante limitado e definido.
Ela sonhava com os brinquedos dos irmãos: que vontade de andar de bicicleta, montar prédios e casas com os blocos de madeira; brincar de corrida de carrinho. Ela nem podia correr e se exercitar como os meninos, para que as fitas e laços que nela colocavam não saíssem do lugar. Maria descobriu que deveria também se comportar como uma boneca para que gostassem dela. Boneca imóvel e sem vontade alguma, morta de espírito e de vontade humana.

Ela não tinha vontade de largar suas bonecas, mas seria tão bom poder brincar com todos os outros tipos de brinquedos....

Aos poucos foi aprendendo que não queriam que ela dirigisse carros, não queriam ela projetasse edifícios ou casas, não deveria pilotar um avião, nem falar o que pensava perante as outras pessoas. Por isso, nunca aprendeu a falar em público. Aprendeu a calar-se.  (continua)





A partir de seus brinquedos, Maria aprendeu  que dela era esperado que cuidasse sozinha dos filhos do casal e que soubesse muito bem cozinhar e passar roupa. Isso bastava, isso era suficiente.

De tanto vestirem Maria só com roupas cor-de-rosa, ela esqueceu as outras cores do arco-iris.

Na época de iniciar os estudos escolares, não teve muito incentivo da família, afinal de contas, ela era só uma mulher. Por que precisaria se interessar por política, por matemática ou por filosofia?

Maria e todas as mulheres nasceram para casar, por isso o investimento nas bonecas, na roupa cor-de-rosa e no ferrinho de passar roupa. O lar, a casa, as crianças e o trabalho doméstico para as mulheres e o restante do mundo para os homens.

Não que ela não quisesse se casar, mas seria tão bom estudar... quem saber ter uma profissão, sustentar-se, para depois pensar no casamento...  Será que teria que se casar para ter alguém para sustentá-la?? Não seria tão melhor se a base do casamento fosse o amor e não a necessidade financeira?

Mais tarde, quando moça, Maria descobriu que não podia votar. O mundo das decisões políticas não era para as mulheres.

Como organizar os hospitais, as escolas, a segurança das pessoas, não diziam respeito às mulheres, elas não entendiam disso.

Maria e todas as mulheres sempre tinham muita louça e roupa pra lavar em casa, por isso não deveriam jamais dar opinião sobre esses assuntos mais sérios. Discutir os salários e os empregos; a riqueza e pobreza de um país eram assuntos só para os homens.

O mundo que Maria enfrentou quando moça, não era aquele mundo cor-de-rosa fantasiado nos brinquedos infantis e incentivado por seus pais.

No mundo real, todas as pessoas precisavam trabalhar. Maria, com o pouco estudo que tinha conseguiu somente emprego com os mais baixos salários.

Trabalhando, do nascer ao por do sol, aos poucos descobriu que seus colegas homens, ganhavam mais do que as mulheres, executando as mesmas tarefas. Ela não conseguia entender isso.

Um dia, tarde da noite fazendo hora extra para poder aumentar o pequeno salário, seu chefe a ela se achegou, tocou em seus cabelos e disse bem baixinho: “posso lhe dar uma aumento se vc for simpática comigo.”

(assédio sexual no trabalho – 32% já sofreram assédio sexual no trabalho, ver pesquisa 2011)

A partir daí Maria começou a sofrer assédio sexual no trabalho. Seu patrão, e muitos outros homens em cargos de mando, usam a relação de poder patrão-empregada para constranger sexualmente as mulheres funcionárias. 

A cada dia o trabalho de Maria passou a ser mais e mais insuportável. Os olhares indecentes, a mão do patrão em seu corpo, cada vez que ele tinha oportunidade, causavam humilhação, indignação e ao mesmo tempo culpa. Mas o medo de perder o emprego era sempre maior.

Maria sempre pensava: será que estou com a roupa errada? Será que eu não deveria usar batom no trabalho? Será que eu sorri de um jeito errado e ele entendeu que eu queria isso?

Maria, assim como outras tantas, sentia culpa por ser uma mulher, por ter um corpo de mulher e provocar o assedio do patrão.

 

Mas a vida de Maria ainda traria outras culpas maiores.

Um dia, voltando do trabalho, ela e uma amiga resolveram ir ao cinema. Nunca tinham regalias, e resolveram um pouco aproveitar a vida. Que bom viver a fantasia dos filmes românticos durante uma hora e pouco.

Após a fantasia do cinema, sofreu o choque da realidade de um mundo que não respeita as mulheres. No ponto de ônibus Maria foi estuprada. O homem furtivo com uma faca, a esmurrou, jogou no chão e a violentou.  

A dor da alma de Maria seria sempre maior do que a dor do seu corpo dilacerado.

Como curar a humilhação de alguém aviltar o seu corpo? Como curar a dor da violência sexual de um homem contra uma mulher?

A já imensa dor da alma que Maria sentia seria acrescentada a dor novamente de sua culpa.

O policial perguntou: que roupa vc estava vestindo?

A vizinhança sentenciou: moça que presta não está na rua à noite.  Elas merecem.

Afinal de contas, mulheres saírem de casa para ir ao cinema é algo tão criminoso, mas tão criminoso que chega a encobrir o ato do estupro. Uma mulher ter a liberdade de sair à rua, de dia ou de noite,  para fazer o que quer que seja, é muito mais revoltante que um homem estuprá-la.

 

Maria descobriu que ela que deveria ter vergonha do crime que sofreu. Que a culpa era dela e não do estuprador. E assim, como outras tantas vítimas mulheres e também crianças, ela aprendeu a se calar para não ser mais ainda discriminada.

Passado alguns anos, conheceu um rapaz e logo se casaram.

Na primeira noite que passaram juntos, sua vã esperança de,  enfim, encontrar um pouco de paz e alegria caíram por terra: 

- “Vc não é virgem? Vc é mulher da vida, vc não presta!”, Maria ouvia essas palavras em meio a tapas e bofetões. 

Por que o meu valor como ser humano depende disso? Ela não conseguia entender... Ela conseguia somente sentir o gosto de sangue em sua boca. Não serei uma boa mãe? Não serei uma boa esposa devido à falta de um pequeno pedaço de pele, que de mim  foi arrancado com violência?

 Desde então, seu marido teve a desculpa necessária para humilhá-la e machucá-la com palavras e com a força bruta. SE não apanhava, era chamada de feia, de gorda, de burra... Ela era um nada.

Queixou-se a sua mãe: “ filha, vc é a esposa, vc tem que obedecer a seu marido”.  Maria não tinha ninguém mais a recorrer... não havia lei alguma que afirmasse o contrário do que havia dito sua mãe. O homem era  o “cabeça” da família e ela lhe devia obediência e sofrer as violências bem calada.

Logo Maria constatou que uma vida  brotava em seu ventre. Sentiu-se ao mesmo tempo assustada e contente. Seu maior temor era ter uma filha mulher.

O primeiro presente que ganhou por carregar uma vida em seu ventre chegou rápido: uma carta de demissão.

No entendimento do patrão, Maria grávida não prestava nem mais para ser explorada no mercado de trabalho. 

Com uma criança em seu ventre a via crucis de Maria estava chegando ao fim.

Enraivecido com a notícia da perda do emprego, em um acesso de cólera, o marido de Maria pois fim a sua miserável vida.

Mas foram muitos os que mataram Maria.

Maria foi morta por uma educação familiar machista que delimita o papel das mulheres e as excluiu do mundo público e  de ampliar os horizontes.

Maria foi morta por uma educação escolar machista que não a profissionalizou e não a preparou para o enfrentamento de sociedade de classes em que todos precisam se sustentar.

Maria foi morta pelo patrão capitalista explorador que aumenta seu lucro diminuindo o salário das mulheres.

Maria foi morta pela sociedade, pelos vizinhos, pelos parentes, por todos que são coniventes com a violência sexual e culpam a vitima, deixando de lado a ação do agressor.

Maria foi morta pelos agentes do poder público que repetem o machismo julgando as mulheres pelas roupas que elas vestem.

Maria foi morta por uma legislação baseada no patriarcado em que as mulheres não possuem os mesmos direitos que os homens.

 Maria foi morta por todos nós que nos calamos perante a violência contra a mulher

Maria morreu foi de silencio.

O meu, o teu, o nosso.


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