Uma luta não é um dia, ou de alguns dias, estamos vivendo neste momento a campanha "16 dias pelo fim da violência de gênero". Nesse período apenas reforçamos aquilo que deve ser o novo dever: a busca pela liberdade das mulheres.
Como parte da reflexão sobre o tema, decidi fazer uma leitura do best seller "Os Cinquenta tons de Cinza", da autora E.L. James.
Nas primeiras páginas o enredo me pareceu um romance água com açúcar no estilo Julia, Sabrina etc. Ao aprofundar a leitura, se é que isso é possível, de tão rasa a história, foi possível perceber o reforço escancarado do discurso machista e capitalista trazido pelas linhas, sequer pelas entrelinhas.
A trama reforça o estereótipo do príncipe encantado e da plebeia nos tempos modernos, afinal, o galã Christian Grey é o melhor partido que as mulheres da galáxia poderiam querer: jovem, lindo, roupas impecáveis, rico, bem sucedido e inteligente, perfeito, ou seja, inumano. Do outro lado a frágil, atrapalhada e linda Anastasia, uma jovem, virgem, recém-formada, que precisa achar seu lugar no mundo.
Ao desenrolar da história, a protagonista encantada com os atributos do misterioso galã, submete-se às mais loucas, perigosas e violentas fantasias de Grey.
Esta análise está distante de julgar fantasias, interesse pelo erótico ou interesse pelo aspecto sexual, na verdade, o que mais me doeu ao ler o livro foi o uso desse tema para atrair leitores e de pano de fundo "vender" literalmente a cultura da violência contra a mulher.
O livro, como já dito, tenta nos convencer de que, para sermos felizes, precisamos de um parceiro como Grey, depois no impõe a ideia de que devemos fazer tudo que o parceiro quiser, ainda que contra nossa vontade, para agradá-lo e satisfazê-lo, sob pena de perdê-lo para alguém que o faça.
Os que leram o livro devem estar pensando: "Mas a Ana fez tudo que fez porque quis, tinha consciência e quis". Será?
Será que todas as decisões que tomamos efetivamente queremos? Será mesmo que uma mulher que é agredida pelo companheiro continua com ele porque quer? Ou talvez queira ficar por medo de passar fome, de ver os filhos sem amparo, medo do que os outros vão pensar, especialmente em culturas tradicionalistas e machistas, como a nossa, onde é "melhor uma mulher mal casada do que mal falada". Ou ainda, convencidas de que as mulheres são o sexo frágil e sempre precisam da figura do protetor, saem da tutela do pai, passam à do marido e não raras vezes vemos os filhos tomando decisões por elas. Será que isso é querer?
A violência de gênero em qualquer de suas formas é um tipo qualificado, pois vem com agravante de ser praticada justamente por aquele de quem mais se espera o amor. Esse discurso da violência consentida é reproduzido pela banalização do abuso na cultura popular, através de romances, filmes e canções que alimentam o contexto que sustenta tais atos, precisamos perceber essas sutilezas que se convertem em agressividade. Li os três livros (com imenso esforço) e conclui isso aí, e não espero (embora deseje) que milhões de pessoas pensem da mesma forma, mas, parafraseando um famoso consultor: concordar é secundário, refletir é indispensável.
Josiane Caldas Kramer
Advogada, economista, especialista em Políticas Públicas e militante do Movimento de Mulheres da Primavera
Advogada, economista, especialista em Políticas Públicas e militante do Movimento de Mulheres da Primavera
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